segunda-feira, 23 de maio de 2011

X

                                                                                                                               (para Iran)

Alguns dias por ai, sem sentido, aquela velha rotina, mas agora eu ficava a maior parte do tempo com uma cerveja em mãos e sentado no sofá que posicionei de frente à janela na qual não me cansava de olhar, mesmo que fosse para mirar outras centenas de janelas do outro lado da rua. Reservei-me a minha casa a não sei quantos dias, me perdi no tempo-espaço, o que sei é que nesses dias meu contato com outros seres humanos não era nada além do mínimo necessário, abandonei o trabalho, dizia apenas bom dia à dona Carmelita que sempre estava com sua porta aberta e insistia em me saudar. Os dias passaram e eu não me dei conta, não sabia direito em que mês ou dia estávamos, há quanto tempo foi a última visita de Hugo ou o dia de meu aniversário. Minha barba rala estava grande, as unhas dos pés já machucavam quando calçava os sapatos, e eu passava o fim do dia inteiro olhando por aquela janela.

Um prédio grande, verde e branco, com janelas miúdas que abriam na vertical, algumas luzes acessas outras não, algumas com cortinas, diversos tipos de cortina, de pano, blackout e persianas, geralmente em tons claros. Não conseguia enxergar direito as pessoas, a distância provocada pela larga avenida não permitia, o barulhos dos carros, motos, ônibus e caminhões eram perfeitamente distinguível. Mas depois de certos dias, não sei ao certo quando, eu não ouvia ou enxergava mais nada daquilo, meus pensamentos distantes vagavam por um passado esquecido, recordações fracas de minha infância e juventude, as coisas se perdiam em minha mente.

Por alguns instantes pensei em sair um pouco, tomar um ar, talvez um cinema, procurei o jornal do dia que se entulhava e misturava com os outros jornais, ainda dobrados e guardados na sacola que o jornaleiro trazia, intocados pela minha falta de paciência em interagir com o mundo. Olhei a programação do cinema, e não sei se o universo conspirava contra mim ou se por uma terrível coincidência, todos os filmes faziam uma alusão ao amor, se não o carregavam em seu nome, suas histórias eram focavam essencialmente em relações amorosas, todos os bons cinemas que eu gostava de frequentar exibiam apenas dramas baseado nas diversas concepções de amor. Perguntei-me se era por conta do inverno, não me lembrava de ter visto uma programação assim tão dramaticamente romântica no verão. Mas não, eu não estava preparado para ver um drama baseado no amor naquele momento, nem tanto por conta de Elisa, mas por estar me achando cada dia mais velho e rabugento, não só na visão que os outros tinham de mim, mas por eu carregar uma certa exigência para tipos de mulheres que deveriam corresponder a um perfil que eu desejava, é claro que sempre existem as mulheres de uma noite só, ou de duas semanas no máximo, não seria capaz de aturá-las além disso, mas estou me referindo àquela mulher que pudesse cuidar de mim agora que estava realmente sentindo o peso da idade. E quando eu pensava nisso, nenhuma mulher me vinha a mente além de Rachimyr, mas ela já é um passado que não posso mais almejar. Defrontar-me com minha incapacidade de amar e ser amado era tudo que eu não gostaria naquele momento.

E assim, sentado em meu sofá lendo o jornal num fim de tarde, a luz de meu apartamento foi cortado. Malditos miseráveis! poderiam ter feito isso pela parte da manhã, mas ao invés disso preferiram me deixar na miséria e no escuro no final da tarde em que nada mais eu poderia fazer além de esperar amanhecer . Acendi algumas velas, ainda um pouco desnorteado. Vi que algumas contas se acumulavam em cima da mesa. Abri uma por uma com a calculadora ao lado e fui somando minhas dividas. A situação estava pior do que eu imaginava. Nesta noite passei em claro fumando um maço de cigarros. Assim que amanheceu fui tomar café na padaria da esquina e esperar o banco abrir para pagar a conta de energia, primordial naquele momento.

Percebi que minha divida era maior que minha capacidade de pagá-las. Uma ponta de desespero pesou sobre minhas costas. Não via saída para aquele drama que se sobrepunha em minha vida. Voltei para casa, voltei a sentar-me no sofá, voltei a acender um cigarro e a única solução imediata que encontrei foi vender meus livros.

Teo estava ali, sentado naquela mesma velha cadeira posicionada no final de um corredor de livros usados. A mesma barba e semblante de homem cansado dos tempos de minha faculdade. Recordo-me de passar tardes a fio ali no sebo, matando as aulas sobre 'a história em karl marx', para ficar sentado ao seu lado depois de fumar um cigarro de maconha. Conversávamos sobre todos os livros da estante e principalmente sobre bucetas. Sexo e livros era tudo que desejávamos nesta vida. Revê-lo da mesma forma depois de quatro anos que sumi dos arredores do campus da universidade foi um conforto.

Não sucumba a mediocridade ele me disse. E enquanto conversávamos sobre os extremos que a vida nos levava uma universitária de cabelos claros e embaraçados que folheava um livro disse que preferia a estabilidade, pensei o quanto era bom ser estudante onde tudo era possível e o peso da vida ainda não recaia sobre os ombros e transparecia no olhar. Certamente a estabilidade é um objetivo à todos em sã consciência, o difícil é mantê-la, respondi em tom de simpatia. Ela sorriu, ainda que continuasse olhando o livro e respondeu algo que não me recordo agora porque estava ocupado de mais prestando atenção em seu corpo torneado, só me passava pela cabeça o quanto ela deveria ser boa de cama.

sexta-feira, 25 de março de 2011

IX

Surpreendentemente Hugo apareceu aqui em casa novamente no dia seguinte, nunca ele tinha feito isso antes, sempre nos encontrávamos em intervalos de no mínimo três semanas. E lá estava ele com uma caixa de cerveja e um maço de cigarro em mãos batendo em minha porta.
- entre meu amigo. O que o traz aqui?
Ele entrou calado e sentou no sofá, acendeu um cigarro e me passou, acendeu outro para ele. Estava contemplativo, com um olhar vazio e apreensivo, se mantinha quieto e eu não me importava, gostava dos silêncios, mesmo os constrangedores, sempre achei melhor ficar calado à ter conversas triviais que não levariam a lugar algum.
Sentados no sofá olhávamos para a parede quando Hugo irrompeu o silêncio de Coltrane na vitrola para me dizer em voz tremula que tinha com caso com Elisa. Continuei estático tentando processar tudo aquilo enquanto ele me dizia que aconteceu, não foi planejado, que eles se amavam e foram feitos um para o outro e que jamais teria feito algo assim comigo se não fosse tão grande o amor que eles sentiam ou algo do tipo. E desde quando você acredita em amor Hugo, seu filho da puta desgraçado. ‘você não a amava, Elisa era apenas um passa tempo para você, uma distração, nós vamos morar juntos’. Eu andava pela sala indignado, como assim? Ainda esses dias Elisa frequentava minha casa e fundíamos, como assim? Todo esse tempo ela também estava com você?. ‘fui eu quem não deixei que ela te abandonasse, estávamos preocupados com você, você andava um pouco triste por conta de seu aniversário, não queríamos te deixar pior’. Não queriam me deixar pior? Eu o segurava pela gola da camisa e o levantei do sofá, não queriam me deixar pior? Que espécie de presente de aniversário é este? Você está louco? E fui empurrando-o para fora do meu apartamento, vamos saia daqui. ‘desculpa Ian, desculpa não queria que fosse assim, você é meu melhor amigo’. Ele insistia. Dei-lhe um soco no nariz e fechei a porta.
Cai arrasado no sofá, meu corpo não reagia, ainda tremulo e por minha cabeça milhões de pensamentos conflitavam, passavam a mil por hora. Terminei a caixa de cerveja e cai ali mesmo no sofá enquanto o vinil chiava pela falta de música.
Acordei numa ressaca filha da puta e decidi ir trabalhar mesmo assim, minhas faltas já eram de mais e eu corria o risco de perder o emprego. No fim de semana peguei o carro e fui a casa de alguns parentes no interior, um lugar belíssimo cercado por rios e cachoeiras. Minha tia ficou feliz em me ver, fez bolo, café, foi ao mercado e comprou queijo, doce de leite, torresmo e chouriço, preparou minha cama e permanecia o tempo inteiro ao meu lado contando causos de todos os vizinhos, que fulano cresceu e se casou com uma prostituta, que cicrano era casado mais a noite procurava por homens, que Mariazinha engordou como uma porca. Por deus como eu precisava daquilo, ser paparicado, não preparava nem meu próprio pão, tudo sempre estava posto ao meu alcance. Voltei pra casa renovado, porém voltar sempre me traz a estaca zero, como se eu começasse tudo de novo desde de o principio e nunca tivesse saído.

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Fui ao médico por causa de um pequeno corte no dedo da mão, um corte que nem  lembro onde arrumei, provavelmente na ultima noite que Hugo esteve em minha casa, e de repente uma inflamação de  forma surpreendente que começou a se espalhar por minha corrente sanguínea, via seu caminho sendo traçado pelas veias que percorriam meu braço. Na sala de espera uma atendente simpática sorria para mim, a pele bem morena, cabelos lisos e preto, como seu olhos, ela não me parecia dali. Fiquei sentado esperando por alguns minutos e olhava para ela pensando e inventando uma história para sua vida, eu poderia dormir com ela só para que me contasse seus segredos, sua origem, seus sonhos, seus planos. Eu poderia dormir com todas as mulheres do mundo só para desvendar seus mistérios, seus medos e segredos. Não me contive e perguntei, o primeiro diálogo que tive com outro ser humano esses dias
-         Qual é seu nome? – ela me pareceu surpresa com meu interesse por sua vida. Não estava acostumada com tamanha atenção dedicada a uma simples atendente. Costumava passar despercebida, mesmo com um sotaque que denunciava que ela não era daqui.
-         Laila. – ela respondeu acanhada
-         e de onde você é Laila?
-         Tunísia.
-         É um país bem distante, me parece interessante. O que veio fazer por aqui?
Sua história era tão fascinante quanto os traços de seu rosto, peculiar, indefinido, o canto dos olhos um pouco caído, dando um tom de tristeza de alguém que muito sofreu e não desistiu da vida. Não pude ouvir sua história pois a médica me chamou, inventei uma para me consolar. Nunca mais a desde então.
No consultório o olhar de preocupação da médica acabou por me deixar igualmente preocupado, não pensei que um pequeno corte pudesse causar danos tão grande. A inflamação no meu dedo não permitia que o sangue circulasse e ele estava coagulando dentro do meu corpo. Fiz exame de diabete, vacina antitetânica e uma semana de antibióticos e pomada. O que significava uma semana sem beber. Mas que se foda, cheguei em casa e abri uma cerveja

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Desde de o dia de minha conversa com Hugo que só tenho saído de casa para trabalhar, toda minha pequena rotina de cafés, bares e arrumação foram desfeitas, me continha em tomar algumas cervejas em casa enquanto assistia os jogos de futebol, a maconha havia acabado e não me dei ao trabalho de procurar por mais, os cigarros comuns me satisfaziam. Virei um inútil, um parasita. As contas de casa atrasavam e só me dava conta que tinha que paga-las quando cortavam o serviço, ficava em meu sofá, estático perante a televisão e ligeiramente embriagado, no ponto certo para deitar em minha cama e dormir sem pensar na vida.

segunda-feira, 7 de março de 2011

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

VIII

Que tristeza incontrolável que me toma agora que angustia infinita angustia infinita quanta redundância angustia é a ausência de explicação do sentimento e não saber explicar o que se sente é pior do que ter um inimigo declarado é pior que raiva ou ódio é pior do que ter uma enfermidade que me deixe quatro dias de cama. E para piorar há 5 dias que chovem há cinco dias que não saio de casa há cinco dias que tento me esquecer do mundo. Sem paciência para estupidez humana sem paciência para as neuroses do mundo sem paciência pra mim. Sem vontade de sair de casa sem casa pra sair. Sem mortes nem vidas sem sentido.  Liguei para o trabalho e avisei que estava doente, ah que preguiça da vida que preguiça de tudo. Era meu aniversário.
Hugo apareceu aqui em casa, a última vez que o vi foi quando Elisa veio a primeira vez aqui. Um mês e vinte e três dias se passaram e Hugo chega em minha porta com uma caixa de cerveja, era o único que sabia que era meu aniversário, com exceção de meus pais que me ligaram as oito da manhã. Ele já foi acendendo um cigarro e procurando um cinzeiro, “aceita um”, ele me ofereceu com um cigarro na boca e estendendo o maço em minha direção. Aceitei um cigarro para fazer-lhe companhia, ele me parecia um pouco apreensivo, me deu os parabéns e mostrou a caixa de cerveja “é para comemorar, sabia que não iria trabalhar hoje”. Enquanto eu guardava a cerveja na geladeira ele foi reclamando da vida. Disse que tinha participado de um evento de fotografia esse fim de semana, que não apareceu antes porque estava muito ocupado com isso, mas que os caras eram todos uns filhos da puta fudidos. O mau-humor de Hugo me animava, me fazia perceber que não era o único emburrado neste dia. Éramos dois nostálgicos sentados no sofá.
- É meu amigo, acho que você será a única pessoa que conseguirei carregar como amigo até o fim de minha vida. – ele disse contemplativo, com um olhar vazio que durou alguns segundos, voltando a si ele comentou sobre os dias de nossa viagem. - Lembra Yan, quando nos formamos e estávamos de saco- cheio da faculdade daquele povo que adorava discutir sobre como seria o mundo pós-revolução-marxista que nunca existiu, naquela punheta intelectual e a gente fumando um cigarro de maconha, olhamos uma para o outro e decidimos que toda aquela conversa era uma baboseira infinita e que não valeria mais a pena gastar um segundo de nossas vidas assim, que melhor seria sair dali e pegar uma praia.  E ficamos vermelhos como um camarão porque fazia quatro anos que não íamos a praia porque antes passávamos o fim de semana inteiro fumando cigarro e discutindo o mundo pós-moderno na casa de algum babaca da história. Aquela praia foi maravilhosa, uma libertação, foi quando decidimos colocar a mochila nas costas e sair ai pelo mundo.
- Sim, foi um belo dia, deveríamos viajar novamente um dia desses Hugo.
- É ai mesmo que quero chegar, acho que tá na hora de chutar o balde de novo, sair fora dessa cidade maldita. Lembra-se da gente em La Paz, quando conhecemos uns peruanos muito malucos e você cheirou pela primeira vez, caralho, aquela era uma cena digna de filme. Você vomitando o albergue inteiro e eu tendo que explicar pro cara que era porque você tinha comido algo estragado. E você perdeu o melhor pó da sua vida, o negócio era bom. E depois a gente ficou mirabolando como voltaríamos pro Brasil com um quilo daquele merda pra vender e faturar uma grana por aqui. Mas você foi um cagão. 
- Filho da puta maldito, você só me mete em encrenca.
E caímos na gargalhada, rindo de nossas aventuras absurdas.
-Vamos cara. Você pega seu décimo terceiro e a gente vai na estada,  vai trabalhando de garçom por ai no mundo, vivendo da boa vontade alheia de ajudar dois meninos perdidos precisando de colo.
- Não tenho mais idade para isso Hugo.
- Bobagem, a alma nunca envelhece. E você vai morrer aqui pro resto da sua vida.
- E Inês?
- Ela não quer saber mais de mim, me deu um pé na bunda. 
Dentro em poucos minutos já conversávamos sobre outro assunto. Mas a idéia sobre a viagem me atormentou noite a dentro. E Hugo não deixou ela morrer nos meses seguintes.



segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

VII

A conversa se estendeu até o começo da noite, nós três, como amigos de infância que não se viam a muito tempo e precisavam colocar em dia os detalhes dos últimos anos. O assunto favorito de Hugo, discutir sobre arte. "O que mais discutiríamos política, religião? o mundo estava um caos lá fora e o sentimento de impotência perante tudo isso assolava a juventude de uma forma assustadora", nada mais fazia sentido Hugo dizia, “então porque perder tempo tentando resolver os problemas do mundo se isso só geraria sentimento de frustração e não há nada que nos salve", ele se considerava um pessimistas convictos sem a intenção de mudar, "nos resta a distração, qualquer forma de tentar entender o mundo sem a arte é evasiva, qualquer forma de guiar a vida sem a arte é evasiva, nos resta conversar sobre ela ou a falta dela.” Ele dizia eufórico com sua razão convicta, com um frenesi de quem gostaria de salvar o mundo de sua ignorância.

- Você viu a exposição desta galeria aqui perto, é de um artista local, mas que merda hein se eu fosse um pouco mais hipócrita estaria ganhando dinheiro como artista mas tenho vergonha de expor merdas, mas certamente seriam melhores do que as que vi. Será que esse povo não entende, tratar a arte apenas como um impulso criativo é matá-la aos poucos, já não basta tanta feiúra e tristeza que vemos por ai porra, quero entrar em uma galeria  e deslumbrar-me com a beleza. E agora com essa arte conceitual qualquer merda que se faça é arte contemporânea, me recuso a ser contemporâneo desses medíocres egoístas que fazem arte como se estivessem questionando o mundo quando na verdade só querem satisfazer o próprio ego de ver sua obra em uma galeria e dizer que são intelectuais e pensadores do mundo. Se não fosse por uns e outros que não se convenceram de toda essa hipocrisia a arte poderia ser dada como morta. – estou certo de que Hugo concordava comigo, mas ele fazia questão de me retrucar e mostrar outra perspectiva sobre o assunto só para provar que entendia mais de arte do que eu.

- Ora Yan, nada mais contemporâneo do que esse lixo artístico com que nos deparamos nas galerias, eles refletem justamente a crise desse mundo pós-moderno. De desarmonia com o mundo, com o corpo e com a mente, nesse emaranhado em que nos encontramos que não tem propósito. Observe meu caro Hugo se o que te digo não tem lógica, a Terra possui uma pulsação que vibra na mesma sintonia que nosso coração, é como se fossemos tudo a mesma coisa, a Terra é uma extensão de nossos corpos, e tudo que fazemos para agredi-la volta-se contra nós, não só na água poluída, mas numa sensibilidade intrínseca que possuímos de sentir o mundo na mesma sintonia do pulsar do coração, ainda não sabemos o que esse sentimento de caos que absorvemos significa, mas toda essa agressão que criamos é repassado e transmitido através da arte.

Eu rio.

- Mas é verdade! – Elisa tenta participar de nossa dinâmica absurda.

- Rio pela ironia deste mundo. Quer dizer: nada mais contemporâneo do que esse lixo artístico?! É desse mundo que eu faço parte, é desse processo de destruição que faço parte. Dessa loucura sufocante e agonizante que não tem sentido. Nesse mundo niilista, que é refletida nessa arte niilista. E a arte é um refugio e uma denuncia anônima, que não tem sentido para quem produz ou reproduz isso. A arte se torna uma válvula de escape em que expressamos essa agonia. Essa arte-lixo é uma denuncia de que o mundo está em crise, de que viver não tem sentido, que estamos destruindo a Terra assim como a nós mesmos. E em minha agonia me pergunto, para que o mundo produz tanta arte? É a esse conclusão que devemos chegar, que a arte é um refúgio da alma, não de uma alma divina, mas no sentido filosófico do que dá animo ao ser.

- Bem, poderia ser a religião, uma paixão, assim como pode ser a arte. Mas o prazer de viver da arte é somente para os que beiram a loucura, vide Van Gogh e Goya, geniais, Modigliani e Claudel, todos em sua insensatez, pois nada mais abstrato do que arte, você não sabe o porquê, mas ela te alimenta, te satisfaz e te completa. Não é como o amor, pois não te limita e não é como uma religião, pois não te dá uma resposta pronta. A arte é somente para os que beiram a loucura!

Caímos exaustos no sofá embriagados e com mais um trago na cerveja para digerir toda a discussão. Alguns minutos de silêncio e Hugo decidiu ir embora.

- Vamos Elisa te levo em casa.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

VI

Chegando a casa, Elisa já estava acordada e conversava com Hugo, a conversa entre eles era de uma intimidade que pareciam amigos de longa data.
- Yann meu amigo, que mulher encantadora arranjaste, porque não me apresentaste essa pérola antes.
- A gente se conheceu melhor ontem - ela respondeu sem pudores.
E como era despida de pudores essa menina, já estava com uma camisa minha velha e larga. Hugo já me servia oferecendo-me uma lata de cerveja, recusei dizendo que primeiro precisava de um café. Elisa gritou da cozinha que já estava preparando, sentia-se a vontade em minha casa mesmo sendo a primeira vez que ali estava.
- Que mulher bonita você arranjou meu amigo – Hugo murmurou – não faz seu tipo, desde Rachimyr que só te vejo com mulheres feias encomendadas para te distrair e fazer esquecê-la. Onde encontraste Elisa?
- Eu não a achei, fui achado, não se nota?
- É meu amigo, a chegada de sua velhice realmente está te afetando, está fora de forma com as mulheres. Quantos anos vai fazer mesmo, 30?
- Não me lembre disso, ainda tenho alguns meses. Mas não percebes meu caro Hugo a revolução feminina já foi completamente instaurada, os tempos já não são mais os mesmos, os homens perderam completamente sua utilidade, não sei mais qual minha função social enquanto macho, servimos somente para satisfazê-las sexualmente e olhe lá, muitas já se juntaram e não querem nos ver nem pintado de ouro, não sabes disso porque namoras a 10 anos com Inês, mas agora, somos objetos sexuais, e o pior, castrados, porque agora elas querem gozar, e como é difícil satisfazê-las, se nosso desempenho não é aquilo que elas esperam rapidamente já estão com outros e somos jogados para escanteio, isso quando não viram lésbicas. Juro que tenho medo toda vez que estou com uma mulher, ou então elas me ligam, aparecem por aqui no final da noite, na maioria das vezes nem querem dormir abraçadas, já vão pedindo o taxi e indo embora, se não, saem bem cedo e sem se despedir. Não quero me queixar, mas as vezes sinto falta de dormir agarradinho. Não sou um cara com muito dinheiro, sabes disso, e ainda por cima mando uma grana todo mês para meus pais, e agora com essa emancipação sexual e saindo do meio acadêmico nem minha conversa intelectual impressiona mais, fico o mercê de seus interesses.
- Um brinde a revolução sexual meu amigo – bradou Hugo levantando o copo de cerveja – agora não precisamos mais nos esforçar para conseguir uma mulher e ainda sim temos relações sexuais toda semana.
- Sobre o que estão conversando? - Elisa interrompeu trazendo um copo de café.
-Política – respondi.
- Mulheres – respondeu Hugo simultaneamente.
- Trouxe bolo de banana, está aqui sobre a mesa. – insisti em desviar o assunto. Elisa fez pouco caso, não insistiu sobre o que conversávamos, provou o bolo e sentou-se ao meu lado dividindo comigo o copo de café.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

V

- O pessoal vai comemora a estréia aqui perto, você vem é claro – ela me disse com seus olhinhos grandes de cachorro, aqueles olhinhos que não se pode negar nenhum pedido.
Deixei que a cena se desenrolasse conforme as convenções necessárias para se levar uma mulher pra cama, aceitei o convite um pouco sem jeito por não pertencer ao grupo, mas ela já dava indícios que não diria não as minhas investidas.
- É claro, não perderia por nada.
E fomos todos a um bar ali por perto. A noite não foi tão desagradável quanto esperava, dentro de mim existe um pessimista esperando ser surpreendido.  Interagir com pessoas da mesma espécie em um estágio de euforia embriagante me suscitava prazeres demasiado agradáveis.
No fim da noite não foi necessário perguntar, Elisa me disse
- Vamos pra sua casa?
Acordei com uma ressaca filha da puta as 8 da manha com uma passeata pela paz nas ruas do centro da cidade. Que maldita paz é essa que um sujeito não pode dormir até mais tarde depois de uma trepada maravilhosa. Sempre achei a coisa mais inútil do mundo as passeatas pela paz, não que eu seja uma pessoa despolitizado, muito pelo contrário sou favorável a diversos tipos de manifestações reivindicatórias, minha barba rala não me deixa mentir, mas há algo mais sem sentido que uma passeata pela paz, afinal o que isso quer dizer? O que isso quer dizer? Essa maldita buzina as oito horas da manha em meu ouvido, é isso que eles chamam de paz? Porque não fazem uma maldita passeata contra a corrupção, contra a desigualdade social, porque não jogam uma maldita bomba no congresso, porque esses malditos pobres inertes continuam vendendo seu voto e suportando a merda do ônibus lotado todos os dias. Que merda de paz é essa, esse bando de filho da puta corrupto se reelegendo ano após ano e ninguém faz porra nenhuma. Essas malditas buzinas me acordaram e me deixam num extremo mau humor, e isso é paz? Olhei pela janela e vi que as pessoas dos edifícios em torno da avenida jogavam pedaços de papel branco e jornais picados, imaginei a paz que os garis teriam depois de toda aquela bagaça.
A Elisa ainda dormia sem dar um sinal de que a gritaria lá de fora a perturbava, um meio sorriso nos lábios indicavam algum sonho indecoros talvez. Ouço alguém esmurrando a porta, seria algum maldito Testemunha de Jeová pedindo paz? Por deus me livrai deste mal, já paguei todos os meus pecados com as cintadas de minha mãe na minha infância quando eu pulava o quintal de dona Ivone pra roubar carambola e cajá. Olho pelo olho mágico da porta e é o maldito Hugo com uma caixa de cerveja em mãos. Maldito portão quebrado do edifício, a merda do prédio não tinha interfone, o maldito do cara, que era o único que me visitava, gritou meu nome pela rua, mas com esse barulho da paz não consegui ouvir. Ele disse que pulou o portão, perguntei se alguém o viu e ele respondeu que havia uma velha sentada no banco da portaria, mas que ela não se mexeu, nenhum murmúrio, completou dizendo que talvez a velha estivesse dormindo, se não, o caso era de óbito. Era só o que me faltava, uma velha morta na portaria de meu prédio e uma testemunha que tenha visto Hugo pulando o portão. Desci correndo desesperadamente. Vi que se tratava de dona Carmelita, uma senhora de seus lá 85 anos que possuía mal de Alzheimer e que sua filha Carmélia tomava conta. Talvez fosse melhor avisá-la, parei no segundo andar onde ela morava e toquei a campainha, avisei que sua mãe se encontrava lá na portaria e me parecia perdida, ela me agradeceu, insistiu que eu entrasse.
- Vamos meu filho, entre, não fique ai na porta que nem um tonto.
Tanta simpatia me comoveu, no mais, sabia que não haveria escapatória, a velha-menor não me deixaria em paz enquanto não entrasse para tomar um chá. Ela pediu que eu me acomodasse na cadeira da mesa onde o café da manha já estava posto e para eu ir me servindo enquanto ela desceria para buscar e velha-mor. Acenei com a cabeça no sentido que sim, apesar de minhas mãos permanecerem sobre minhas pernas sem saber o que fazer. Senti o cheiro do chá de capim-cidreira enquanto tudo que mais queria era um café extra-forte sem açúcar, mas naquela casa não entrava cafeína e eu me perguntava como aquela velha conseguia permanecer de pé todo o dia. Malditas convenções sociais. Eu passava a semana inteira tentando evitar a velha, para num descuido de Hugo eu parar nessa casa com cheiro de mofo e mijo e tendo que tomar chá de capim-cidreira.
A casa ainda conservava os móveis antigos, desses que não se fabrica mais e que são feitos para durar, numa decoração nada moderna, nas paredes encontravam-se duas borboletas de metal douradas, na entrada uma jarra grande de um metro com umas folhas de palha seca, o sofá marrom e um tapete bordado com o menino Jesus, mesa de centro, poltronas, uma estátua de cachorro num outro canto abaixo da janela, a mesa de jantar toda de madeira assim como suas cadeiras, e todas as outras bugigangas se encontravam naquela sala que mau-mau dava espaço para uma pessoa passar. Era de uma breguisse tamanha que no final tudo de harmonizava. A velha-menor chegou carregando a velha-mor.
- Ai menino, essas escadas ainda me matam.
- Vaso ruim não quebra
- O que você disse meu filho?
- Não, nada, estava somente pensando alto. - sorte que as velhas eram surdas
- Venha, tome um pouco de chá - e ela foi me servindo na xícara.
A mesa sempre posta pra duas pessoas mesmo a velha mor não comendo na mesa. Talvez ela sempre estivesse a espera para uma possível visita, ou encontrar algum vizinho descendo ou subindo as escadas, sempre de prontidão para servi-lhes uma xícara de chá. Talvez aquela velha sentada na portaria fosse uma isca para que alguém batesse em sua porta e não tivesse escapatória. Maldita dona Carmélia.
No final ela insistiu que eu levasse um pedaço de bolo de banana. Fiz posse de quem iria recusar, mas aceitei de bom grado, diria a Elisa mais tarde que fui a padaria só pra comprar-lhe café da manha. Pronto fiz minha boa ação do dia, o reino do céu já estava garantido. 

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

IV

Cheguei um pouco atrasado, talvez cinco minutos, esqueci de checar no relógio, mas ainda em tempo de comprar o ingresso e sentar-me antes do início da peça. Banquete era o que dizia o cartaz, com letras vermelhas e arqueadas, centralizado na parte superior, abaixo, a foto de um rapaz com chapéu coco preto, camisa branca, gravata borboleta e suspensório sentado em uma cadeira com um canhão de luz sobre sua imagem, atrás quatro atores coadjuvantes ao seu redor, um belo cartaz em cores vermelha, preta e branca.
Entrei. O teatro pequeno e já escuro, todos acomodados nas poltronas azuis e velhas cochichando algo sobre suas vidas, ou sobre a existência humana, não eram muitos, talvez alguns amigos e parentes, teatro não é bem apreciado por esses lados, e a qualidade dos espetáculos não era lá um incentivo. Mas essa merda de cidade provinciana tinha lá suas qualidades, mulheres bonitas a picas, sobre a vida cultural, eu me limitava ao computador, alguns discos e livros, no mais, nada me interessava naquela cidade além do álcool.
A peça tinha lá seus momentos altivos, que emergiam de uma maioria de encenações e falas mediocres, mas ir sem expectativas fez com que eu me curvasse diante de alguns diálogos e cenas. O texto e o autor principal não eram de todo o mal, de resto, pode-se jogar tudo no lixo, não, não, serei tão bruto e covarde, há algum mérito em se tratando de um texto escrito por um autor local, encenado por atores locais, com iluminação, cenário, figurino e maquiagem local numa cadeira local nada confortável.
Elisa encenava uma dançarina de cabaré coadjuvante, suas falas  não eram tão vem encenadas quanto as curvas de seu corpo, mas com aquelas pernas e bocas não seria errado dizer que ela iria longe.  Uma hora e sete minutos de espetáculo (estaria correto o uso desta palavra?), e todos aplaudiram de pé quando as cortinas se fecharam, pelos burburinhos de elogios pessoais não me restavam dívidas de que o público se tratava de amigos e parentes.
Esperei um pouco que o salão esvaziasse e fui ao camarim, Elisa, ainda de cafetina, collant preto, saia vermelha, meia arrastão e uma flor vermelha presa na parte esquerda do cabelo, tirava a maquiagem quando me viu no reflexo do espelho e deu um grito, nem tão agudo, nem tão grave, um grito na medida certa. Levantou-se e me abraçou num pulo entrelaçando braços e pernas e jogando o peso de seu corpo sobre o meu. Neste momento pensei que talvez pudesse ter levado flores, mas que burro eu fui, quanto filmes hollywoodyanos serão necessários para eu aprender a ser um galã de verdade. Inevitavelmente vi que seus glúteos se conservavam duros, uma menina, deve ser, ninguém com mais de vinte e cinco cultivava uma bunda tão tenaz.
Ela me disse que estava surpresa em me ver por ali já que não liguei por esses dias. Usei a velha desculpa de que andei muito ocupado, as mentiras são necessárias para a manutenção de um bom convívio social, uma praxe entre os ocidentais para se manter a coesão entre os homens. Utilizei esse recurso novamente quando ela me perguntou o que achei da peça, ah, a mentira, bendita a capacidade humana de mentir, sem ela viveríamos no Estado de Natureza Hobbesiano e eu não comeria ninguém essa noite.
Sim, definitivamente ela deveria ser uma moça jovem (e encantadora), com aquele sorriso inocente achando graça de tudo, e posso dizer que por alguns segundos essa felicidade bastarda que lhe proporcionei ao dizem em termos cult o quanto gostei do teatro, também me provocaram uma satisfação momentâneo. Pessoalmente prefiro as comédias, a vida já é um drama indelével, mas se era para impressiona Elisa. Sobre a falta de estrutura perguntei se havia alguma influencia do teatro essencial, e sobre seu caráter existencialista, suscitado pelos conflitos internos do homem entre a doutrina cristã coercitiva e a inexistência de deus levavam ao ator principal a um hedonismo sem culpa, se assim o seria ou não?, citei Sartre e Camus, finalizei discursando sobre os setes pecados capitais e como num mundo pós-moderno o pecado era não tê-los e toda a baboseira clichê que as meninas se amarram. Disse tudo isso enquanto ela tirava a maquiagem e trocava de roupa. Não posso garantir que ela tenha  entendido, mas seu sorriso era contagiante e seria uma pena estragá-lo, ela me achava um intelectual e isso satisfazia meu ego, saímos do teatro ambos satisfeitos