quinta-feira, 14 de outubro de 2010

IV

Cheguei um pouco atrasado, talvez cinco minutos, esqueci de checar no relógio, mas ainda em tempo de comprar o ingresso e sentar-me antes do início da peça. Banquete era o que dizia o cartaz, com letras vermelhas e arqueadas, centralizado na parte superior, abaixo, a foto de um rapaz com chapéu coco preto, camisa branca, gravata borboleta e suspensório sentado em uma cadeira com um canhão de luz sobre sua imagem, atrás quatro atores coadjuvantes ao seu redor, um belo cartaz em cores vermelha, preta e branca.
Entrei. O teatro pequeno e já escuro, todos acomodados nas poltronas azuis e velhas cochichando algo sobre suas vidas, ou sobre a existência humana, não eram muitos, talvez alguns amigos e parentes, teatro não é bem apreciado por esses lados, e a qualidade dos espetáculos não era lá um incentivo. Mas essa merda de cidade provinciana tinha lá suas qualidades, mulheres bonitas a picas, sobre a vida cultural, eu me limitava ao computador, alguns discos e livros, no mais, nada me interessava naquela cidade além do álcool.
A peça tinha lá seus momentos altivos, que emergiam de uma maioria de encenações e falas mediocres, mas ir sem expectativas fez com que eu me curvasse diante de alguns diálogos e cenas. O texto e o autor principal não eram de todo o mal, de resto, pode-se jogar tudo no lixo, não, não, serei tão bruto e covarde, há algum mérito em se tratando de um texto escrito por um autor local, encenado por atores locais, com iluminação, cenário, figurino e maquiagem local numa cadeira local nada confortável.
Elisa encenava uma dançarina de cabaré coadjuvante, suas falas  não eram tão vem encenadas quanto as curvas de seu corpo, mas com aquelas pernas e bocas não seria errado dizer que ela iria longe.  Uma hora e sete minutos de espetáculo (estaria correto o uso desta palavra?), e todos aplaudiram de pé quando as cortinas se fecharam, pelos burburinhos de elogios pessoais não me restavam dívidas de que o público se tratava de amigos e parentes.
Esperei um pouco que o salão esvaziasse e fui ao camarim, Elisa, ainda de cafetina, collant preto, saia vermelha, meia arrastão e uma flor vermelha presa na parte esquerda do cabelo, tirava a maquiagem quando me viu no reflexo do espelho e deu um grito, nem tão agudo, nem tão grave, um grito na medida certa. Levantou-se e me abraçou num pulo entrelaçando braços e pernas e jogando o peso de seu corpo sobre o meu. Neste momento pensei que talvez pudesse ter levado flores, mas que burro eu fui, quanto filmes hollywoodyanos serão necessários para eu aprender a ser um galã de verdade. Inevitavelmente vi que seus glúteos se conservavam duros, uma menina, deve ser, ninguém com mais de vinte e cinco cultivava uma bunda tão tenaz.
Ela me disse que estava surpresa em me ver por ali já que não liguei por esses dias. Usei a velha desculpa de que andei muito ocupado, as mentiras são necessárias para a manutenção de um bom convívio social, uma praxe entre os ocidentais para se manter a coesão entre os homens. Utilizei esse recurso novamente quando ela me perguntou o que achei da peça, ah, a mentira, bendita a capacidade humana de mentir, sem ela viveríamos no Estado de Natureza Hobbesiano e eu não comeria ninguém essa noite.
Sim, definitivamente ela deveria ser uma moça jovem (e encantadora), com aquele sorriso inocente achando graça de tudo, e posso dizer que por alguns segundos essa felicidade bastarda que lhe proporcionei ao dizem em termos cult o quanto gostei do teatro, também me provocaram uma satisfação momentâneo. Pessoalmente prefiro as comédias, a vida já é um drama indelével, mas se era para impressiona Elisa. Sobre a falta de estrutura perguntei se havia alguma influencia do teatro essencial, e sobre seu caráter existencialista, suscitado pelos conflitos internos do homem entre a doutrina cristã coercitiva e a inexistência de deus levavam ao ator principal a um hedonismo sem culpa, se assim o seria ou não?, citei Sartre e Camus, finalizei discursando sobre os setes pecados capitais e como num mundo pós-moderno o pecado era não tê-los e toda a baboseira clichê que as meninas se amarram. Disse tudo isso enquanto ela tirava a maquiagem e trocava de roupa. Não posso garantir que ela tenha  entendido, mas seu sorriso era contagiante e seria uma pena estragá-lo, ela me achava um intelectual e isso satisfazia meu ego, saímos do teatro ambos satisfeitos